Alba e o Amor
Simão Luiz Stanislawski Junior
Licenca Creative Commons (ND)
Havia tempo os dias estavam nublados e o frio era insuportável. As pessoas andavam descrentes. A discórdia reinava por toda parte. Não havia como confiar, pois uma vez que o descrédito era a regra, a implacável teoria dos jogos da traição era sempre mais proveitosa, o que naquele lugar transformou gradativamente os homens em bichos.
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Havia tempo os dias estavam nublados e o frio era insuportável. As pessoas andavam descrentes. A discórdia reinava por toda parte. Não havia como confiar, pois uma vez que o descrédito era a regra, a implacável teoria dos jogos da traição era sempre mais proveitosa, o que naquele lugar transformou gradativamente os homens em bichos.
As ruas eram sujas, as casas derrubadas. A feiura também predominava, assim como o desleixo. Ser sincero significava ser bobo, assim como ser compassivo significava ser fraco. Tudo era uma guerra, naquela sociedade ganhar o pão de cada dia significava apenas lutar contra os mais fortes. Não se pensava em unir para construir. A luta de classes era incentivada pelo poder, o que estimulava nos seres um sentimento de inveja.
Por aquela região caminhava Alba, mulher vivida o suficiente para ser considerada madura e bonita o suficiente para ser considerada jovem. Em verdade não caminhava, arrastava os passos em um movimento que exprimia mais a necessidade de continuar do que vontade. Desgostosa com o seu meio, há algum tempo havia decidido que sua tarefa seria a de procurar na rua artigos raros que exprimissem algo de belo ou de bom. Quando tão raramente encontrava algo, ela guardava-o em casa junto com os outros.
Os anos passaram e sua coleção se transformara em uma colcha de retalhos, pois embora cada objeto a trouxesse algum significado especial, nada era pleno, nem extraordinário, até porque por ali era pouco provável que fosse encontrar algo que transcendesse a mediocridade do lugar. Diariamente, então, Alba sentava-se em uma cadeira com vista a sua bem cuidada coleção e chorava seus esforços inúteis, acreditando que tal procura apenas a fizera perder tempo. Isso se repetiu por muito tempo.
Ela prosseguia em sua missão e caminhava sempre com os olhos para baixo, tateando, uma vez que acreditava que os homens, fragilizados como se encontravam, não raro esqueciam tudo aquilo que suas virtudes construíam, deixando tais objetos jogados. E embora encontrar algo lhe trouxesse felicidade momentânea, toda noite ela se entregava à tristeza.
Certa noite, ela de joelhos, quase desistindo, suplicou:
“Eu não suporto mais chorar, ó grande Zeus, minha vida tem sido uma tremenda injustiça. Passei os meus anos buscando o que havia de mais nobre por estas ruas sujas e o que tenho? Retalhos. Sim, retalhos, pois se fosse capaz de juntá-los em um só, tornar-se-iam um monstro ainda mais afastado de Sua grandeza, ainda mais próximo do Hades. Então, por isso, eu só tenho a lamentar, mas meus lamentos só aumentam a minha angústia porque eles não são como a música de Orfeu e sim apenas o desprezível pranto do homem comum.”
O choro passou e a mulher solitária pôs-se a dormir em sua modesta cama. Dormindo, começou a sonhar. No sonho, caminhava pelo mesmo lugar, percorria os mesmos caminhos escuros de sua vida real e também ali estava a buscar suas raridades. Algo pois, lhe chamou atenção, parecia uma carta escrita em um tecido. O objeto estava muito sujo e amassado, porém era muito nobre, parecia ter sido escrito há tanto tempo, que ela podia afirmar que era tão antigo quanto a escrita do próprio destino. Certamente havia sido esquecido e abandonado, como os outros objetos que havia encontrado. De tão sujo o tecido, a mensagem escrita estava incompreensível. E Alba teve de passar meses a cuidar do mesmo, limpando-o e tomando o cuidado de não apagar sua mensagem. Era uma tarefa trabalhosa, mas por uma razão desconhecida, ela estava feliz. Tanto o sonho quanto seu sono durou meses até que a mesma conseguiu identificar a mensagem e percebeu que a tinta utilizada brilhava tanto que parecia roubada dos deuses. O texto dizia:
“A tu que se dispuseste a me guardar com tanto empenho,
Quero amá-la até onde eu consiga compreender o limite do Amor pleno. Até onde consiga praticar o Amor dos deuses, puro e purificado. Puro por sua natureza superior e purificado pelo cuidado frequente que me empenharei em ter com este sentimento.
Pois o amor é tudo. E além disso, é isso e mais um pouco. E sobretudo é escolha, sendo assim, escolhi você para manifestar o que de melhor minha alma tão calejada pode sentir.
Esforçar-me-ei para me manter respeitável, assim buscarei ser leal e fiel, resistindo com dignidade e honradez ao costumeiro assédio daquelas que cogitam ter de mim um décimo daquilo que mostro por ti, uma vez que seria o máximo que eu poderia doá-las, neste caso.
Esforçar-me-ei para me manter sereno, compreender que o meu amor é por suas virtudes, mas que terei de entender o que tens de fraquezas. Desta forma, poderei cuidar de você naquilo que sei e tu não sabes.
Esforçar-me-ei para confiar, compreendendo que o seu amor é por minhas virtudes, mas tu terás de entender o que tenho de fraquezas. Desta forma, entregar-me-ei aos teus cuidados, assim poderei melhorar naquilo que não sei e tu sabes.
Esta é minha escolha.”
Alba, que de tanto cuidado já havia se afeiçoado, abarrotou-se de paixão que não podia se conter. Ainda no sonho, ela já podia se ver caminhando olhando para frente, flutuando e não mais procurava nada, posto que guardava com atenção seu escrito no bolso. No entanto, um novo sentimento lhe acometeu: a qualquer momento poderia perder o escrito. Poderia deixar cair ou poderia deixar que lhe tomassem e isso a fez entrar em desespero, pois ainda que estivesse plena de felicidade, desta vez poderia perde-la da noite para o dia e assim voltar à sua angústia de outrora.
E assim a mulher, mesmo feliz, no sonho voltou a chorar toda a noite. Os objetos de sua coleção haviam sido descartados e estava ela chorando sozinha em uma sala vazia: ela, a cadeira e o escrito em suas mãos. Após muito refletir, colocou em prática a única ideia que teve: Alba pediu a Afrodite que costurasse o tecido com a mensagem em seu coração, pois assim enquanto ela vivesse, o amor que sentia estaria seguro com ela.
Afrodite também refletiu e decidiu:
“Alba, linda Alba! Concedo-lhe o pedido e tu poderás, então, viver e morrer com tal bela mensagem salva, amor tão nobre. Assim dedicarei meus esforços a costurar a mensagem do amor em teu peito. Mas não poderei fazer só isso. Uma vez que o amor também rejuvenesce, eu transformarei o seu coração naquele mais saudável da pessoa mais jovem, assim tu poderás viver plena e feliz. E declaro seu coração imortal, portanto, é certo que tu morrerás, mas o amor, tão belo amor que carregas em teu peito, não poderá morrer junto com você. Assim seja.”
Ela acordou e eis que a mensagem estava gravada em seu coração, como prometido no sonho. E enquanto viveu, viveu plena e feliz com seu amor.