Conto n. 1: Primeira Parte

Acordo em mais um dia de minha vida sem propósito. Levanto da cama dura e fria, colchão surrado, velho como eu mesmo. Setenta anos já se passaram de uma vida bem vivida até certo ponto, mas sinto como se tivesse o dobro. O espelho manchado mais uma vez me lembra sobre minha decadência. Sento à beira da cama e respiro lentamente: É uma luta diária enfrentar o mundo lá fora. 

Calço as pantufas surradas, cambaleio até a pequena cozinha. Naturalmente bato os braços em alguma coisa, fato comum para minha altura peculiar, mas que ignoro, assim como ignoro minha companheira dor nas costas. O leite é de segunda e seu amargor ao bebê-lo é o amargor de  pertencer a uma classe média que na verdade é pobre. O dia mal começou e quero descansar. Velho disciplinado e ranzinza, forço-me a sair.

Com o aperto do botão, o elevador ganha vida e as portas se fecham, selando o destino momentâneo de dois estranhos: eu mesmo, e uma jovem com aparência de adolescente, vibrante e imersa em seu celular. Confesso que não faço ideia de quantos anos ela tem. Olho para ela, minha mente vagueia por caminhos tortuosos, aquelas formas tão lisas, perfeitas, macias, e eis que iludo-me com a possibilidade de um olhar cruzado. Nesse curto instante, meus olhos faíscam e quase acredito que a barreira geracional pode ser quebrada. Para mim não pode. A jovenzinha sente o peso de meu olhar e se afunda em seu smartphone, evitando-me a todo custo. Olho para meu reflexo na porta espelhada e só vejo um espectro daquilo que outrora já foi, com uma ruga para cada ano de abismo entre eu e ela. A porta se abre e ambos seguimos nossos caminhos, irremediavelmente distantes.

Caminho pelas ruas olhando pra baixo, ombros curvados, e é nessa direção que avisto Isabella, aquela pequena por quem me apaixonei torridamente há mais de 40 anos, paixão recíproca. Ela caminhava com seus cabelos negros brilhantes, cintura fina marcando os quadris, seios pontudos, pele viçosa, cheia de vida, exatamente como era quando éramos íntimos. 

Nossos olhares se encontram, e por um momento, a antiga conexão reacende:

- Isa!

- Lucas!

- Eu…

- Não diga nada! - com um sorriso tímido.

- Você está linda - eu digo - Parece que o tempo não passou para você. Como consegue?

- Você já sabe ... Mas e você, como tem passado?

- Ah, vivendo um dia após o outro…

Conversamos brevemente algumas amenidades e finalmente:

- Lucas… eu… tenho que ir – brilha uma lágrima solitária de seus olhos.

- Por favor…

Ela se vira e vai.

Ela nunca deixou de me amar. Sei exatamente a razão por qual ela me rejeita: Somos da mesma época, mas somente eu sou um velho decrépito.

Eis que em um ponto, vejo uma grande manifestação bloqueando a rua. Gente idosa, normal como eu, cansada e marcada pelo tempo, protesta contra os preços abusivos da Bionova, erguendo cartazes em seus braços frágeis pela distribuição igualitária da “bendita” tecnologia. Por um momento, sinto vontade de me juntar ao protesto. Mas no fundo, sei que é inútil. 

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